“Tão grande é o defeito de confiar em todos, como o de não confiar em ninguém.” (Sêneca)
Recordo-me de um tempo, em minha tenra infância, em que me dirigia até um armazém na esquina de casa, a pedido de minha mãe, para buscar pão e leite. Não necessitava levar dinheiro ou um bilhete assinado. Bastava minha presença para trazer o que fosse preciso. O acerto de contas era assunto a ser tratado posteriormente. Coisa de adultos.
Quando chegava o verão, eu podia inclusive dar-me ao luxo de passar pelo mesmo armazém e apanhar um refrescante sorvete de palito. Claro que resguardados certos limites – levar o time de futebol para compartilhar desse privilégio era atitude passível de severa punição: a perda da confiança de meus pais.
O dono do armazém consentia com esse procedimento porque tinha certeza de que meus pais pagariam a conta. Analogamente, meus pais acreditavam que o valor apresentado como despesa seria justo e correto, correspondendo exatamente ao que fora consumido.
Cresci compreendendo que aquela situação representava uma espécie de contrato social, calcado na honra e na palavra, ao que se convencionou chamar de “fio de bigode”. E percebi que aquilo fazia parte de minha formação, de minha cultura e de meu caráter. De tal forma que o empréstimo, entre colegas, de livros, discos de vinil (sim, CD naquele tempo eram apenas a terceira e quarta letras do alfabeto) e até pequenas importâncias em dinheiro era selado pelo mero compromisso pessoal da devolução em perfeito estado de conservação.
Anos mais tarde, uma oportunidade de trabalho bateu à minha porta. O destino era uma pequena cidade que contava, na ocasião, pouco mais de 80 mil habitantes. Aconchegante, bem estruturada, mas uma típica cidade interiorana.
Lá fiz amizade com Sérgio Casagrande, um carioca já radicado no local há um par de anos, que sentenciou o que me aguardava. Disse-me ele: “Aqui, você é mocinho até que se prove o contrário. Nos grandes centros, de onde viemos, é o oposto, ou seja, somos bandidos até que provemos o contrário”. Dias depois, pude vivenciar aquelas palavras. E lembrei-me daquele armazém de minha infância.
As duas últimas décadas nos legaram abundância de recursos, tecnologia sem precedentes, capacidade de comunicação quase ilimitada. Migramos do racionamento para o delivery, do mundo analógico para o digital, do telex para a videoconferência. E do “fio de bigode” para o papel assinado.
Casamentos demandam acordos pré-nupciais, instituições de ensino firmam contratos de prestação de serviços, reuniões são registradas em livros de ata. Advogados grassam aos milhares. Uns, para elaborar contratos; outros, para contestá-los. Sem falar do magistrado que delibera qual dos dois será agraciado com a razão.
O contrato social verbal está extinto. Vigoram apenas os contratos políticos, econômicos e até ecumênicos. Um mundo de contratos, impressos em cinco vias, com duas testemunhas, registrados e com firmas reconhecidas. Um mundo burocrático e cartorial onde uma pessoa conhecida por escrivão, dotada de uma concessão denominada fé pública, tem o poder discricionário de dizer se eu sou mesmo a pessoa que declaro ser.
De tanto ouvir a assertiva “quem paga mal, paga duas vezes”, passei a andar com um talão de recibo em minha pasta, guardando comprovantes de pagamentos durante meses.
De tanto prestar serviços com remuneração vinculada ao êxito, que quase sempre obtenho, sendo desdenhado pelo cliente no recebimento de meus honorários – o mesmo cliente que outrora, em dificuldades, faria qualquer coisa para reverter sua situação – passei a solicitar-lhes uma assinatura ao final de cláusulas e parágrafos. Ainda estou aprendendo a fazer isso, posto que contrário à minha natureza. Mas estou aprendendo...
Hoje, quando entro em uma padaria e deparo com um pequeno aviso anunciando “Fiado só amanhã”, desperto para este novo mundo. Compreendo que a palavra “fiado” advém de “confiado”, e que confiança é algo que antes nascia com a gente, depois passou a ser virtude difícil de ser conquistada e, agora, corre o risco de habitar apenas os dicionários e romances dos séculos passados.
Acho que foi por conta disso que resolvi deixar o bigode crescer e me mudei para o interior. Só para ser tratado como mocinho e poder, por mais algum tempo, confiar e ser confiado.